domingo, novembro 09, 2014

Descortinando o passado

Dia desses, o ator Sidy Correa, que andava em cartaz recentemente com Duas Criaturas Gritando no Palco, disse algo de certa lógica: “Em algum momento não muito distante, o teatro curitibano se descolou do público. As casas só enchem mesmo com as peças de globais”. Correa se refere, de modo geral, ao fenômeno da peça-blockbuster que chega para temporadas curtas e abarrota o teatro, casos de Lampião & Lancelote e Peppa Pig. Entretanto, algo pode estar mudando. O Teatro Lala Schneider, por exemplo, apresentou no último fim de semana uma montagem resultante de oficina sobre Carmen Miranda. Foram quatro dias de lotação máxima e público de quase mil pessoas. Villa das Crianças, baseado no cirandeiro-erudito de Villa-Lobos, teve fila de virar a quadra no sábado à tarde, no Guairinha. Caminhando à margem da espetacularização cultural e de novos ventos, é perceptível também um destroncamento do público em relação aos nomes que compuseram a história cênica paranaense e militaram por muito tempo na área, a ponto de se tornarem nomes de teatros – estes mesmos locais que sofrem hoje para ter plateia.
Lá, sem concessões, Zé Maria
1955
Ano da reinauguração do Teatro Guaíra: abertura de um novo período na história teatral paranaense do século 20.
José Maria Santos (1933-1990) emergiu da grande geração de atores paranaenses do Sesi dos anos 1950, ao lado de Lala Schneider e Rubem Valdruga, todos formados pelo professor Aristides Teixeira. Zé Maria, como era conhecido, marcou-se pela promoção do teatro paranaense e por seu vanguardismo intelectual – foi ele quem montou O Auto da Compadecida pela primeira vez em Curitiba.
Sempre que passava por alguma dificuldade financeira, apelava para a sua peça-emblema Lá, o monólogo surgido em 1971 e que protagonizou mais de 1,8 mil vezes – a última temporada foi em agosto de 1989, no auditório Antonio Carlos Kraide.
Em uma crônica de 5 de abril de 1990, publicada em O Estado do Paraná, o jornalista Aramis Millarch dizia: “Outro aspecto na personalidade de José Maria Santos que não pode ser esquecido: a sua independência crítica em relação ao oficialismo das artes paranaenses”.
O Teatro José Maria Santos, localizado na Rua Treze de Maio, 655, foi inaugurado em 27 de junho de 1998, após um imbróglio que se arrastou por quase 20 anos.
Lala Schneider: a pioneira
Lala Schneider (1926-2007) teve a força de um oceano. Refundou o teatro paranaense e expandiu-se em múltiplas. Considerada uma das cinco maiores atrizes de seu tempo, a iratiense rompeu diretrizes e arbítrios, podendo ser considerada nossa desbravadora.
Lala integrou a pioneira turma da Escola Dramática do Sesi, de 1951, e esteve ao lado das principais companhias e atores brasileiros. Em mais de 50 anos de carreira, atuou em 99 peças e dirigiu outras 20. Também participou de novelas, como Lua Cheia de Amor e Felicidade, da Rede Globo, além de Tereza Batista, inspirada na obra de Jorge Amado – a minissérie contava com atores do quilate de Othon Bastos e Stepan Nercessian.
Um grande marco de sua carreira foi a participação em O Vampiro e a Polaquinha, entre 1992 e 1993, para muitos, a maior montagem da história teatral paranaense. Também integrou o elenco do clássico Aleluia, Gretchen, de Sylvio Back. Desde 1994, seu nome batiza o teatro da companhia de João Luiz Fiani, ali na Rua Treze de Maio, 629. Morreu em 28 de fevereiro de 2007. Enquanto dormia.
As inquietudes de Cleon Jacques
Cleon Jacques (1965-1997) tinha lá suas idiossincrasias. Odiava que se referissem ao seu trabalho como direção. “Sou um encenador.” Inovador, sempre em busca de novas formas narrativas, achava Gerald Thomas uma eterna repetição e era reconhecido por estudar profundamente as raízes históricas de suas montagens.
Começou a carreira em Ponta Grossa, interpretando um Juquinha na comédia O Noviço, de Martins Penna. Mas era 1984 e a região dos Campos Gerais ficou pequena para suas ambições estéticas. Já em Curitiba, estudou no curso superior de Artes Cênicas da PUC/Teatro Guaíra. Almejou resgatar o equilíbrio entre a narrativa e a beleza plástica – afirmava que os anos 1970 foram a época do grotesco.
O Teatro Cleon Jacques, destinado a espetáculos de vanguarda, foi inaugurado em 21 de julho de 1998, com a apresentação de Alice Através do Espelho, texto bem representativo de suas inquietudes. Em Contra Cena – O Teatro em Curitiba Contado por Seus Artistas, de Ignacio Dotto Neto, dizia: “Tenho medo desse academicismo excessivo, estar preso a dogmas, normas e regras de fazer teatro.”
Kraide, o noturno esquecimento
“Mostre-me os bares de uma cidade, que eu te direi quem é o povo que nela vive”, dizia Antonio Carlos Kraide (1945-1983). O diretor de Curitiba Velha de Guerra, uma de suas peças clássicas, que ambientava sete bares da capital e seus respectivos perfis de público, representou como poucos o espírito boêmio e pulsante da metrópole e o nosso esquecimento cultural crônico.
Morto muito, muito precocemente – Kraide foi assassinado em circunstâncias jamais esclarecidas devidamente –, o piracicabano atravessou as décadas de 1970 e 1980 com montagens vigorosas, marcadas por uma linguagem direta e urbana. Era um desses gênios que Curitiba produz e se desapega sem avisar.
O Teatro Antonio Carlos Kraide, localizado na Avenida República Argentina, 3.430, no Portão, foi inaugurado em 15 de dezembro de 1988. A cerimônia foi exemplar. A jornalista Dinah Pinheiro Ribas, à época, assessora de comunicação da Fundação Cultural, convidou meio mundo cultural da cidade para a inauguração – atrizes, diretores, empresários, sindicatos da categoria. Ninguém foi.
http://www.gazetadopovo.com.br/cadernog/conteudo.phtml?tl=1&id=1511994&tit=Descortinando-o-passado

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