O prédio da Matte Leão S.A., no Rebouças, em Curitiba, foi demolido há quatro anos – em abril de 2011. À época, milhares de internautas manifestaram seu descontentamento nas páginas da Gazeta do Povo. Não sem demora. Dias antes das paredes virem ao chão, o jornal publicou reportagem na qual estampou fotos de ex-funcionários, com a carteira de trabalho em punho, ressentidos com o sumiço do lugar onde na juventude ganharam seu pão. Esperava-se uma reação popular, mas nada. Até que na sequência a foto das ruínas foi publicada. Dessa vez houve grita, mas era tarde.
Na última semana, as redes sociais pregaram uma nova surpresa ao “caso Matte Leão”. Um leitor republicou a matéria que mostrava o prédio no chão, o que bastou para reacender o debate e confirmar a frustração que ronda o episódio. Em quatro dias – de 7 a 10 de março – 19,5 mil internautas acessaram o texto, número alto para uma matéria sobre patrimônio. Não poucos reafirmaram em mensagem seu pesar pelo desaparecimento da fábrica, fundada em 1901. Motivos, de sobra. Não se conta a história do Paraná sem falar do ciclo da erva-mate. Não se fala do ciclo da erva-mate sem citar a Matte Leão. Não poder mostrá-la para as novas gerações é uma barbárie cultural.
Dado o incontestável caráter patrimonial da fábrica, havia expectativa de que o Ippuc a protegesse por decreto ou que a Igreja Universal do Reino de Deus, a Iurd, tomasse a iniciativa de preservá-la, conciliando suas necessidades e a arquitetura do passado – a exemplo do que acontece no Shopping Müller, uma antiga fundição; ou com o Centro de Criatividade do Parque São Lourenço, outrora um cortume. Nenhuma das duas hipóteses se confirmou. O alvará de demolição foi executado.
No quarteirão de 16,3 mil metros quadrados está em construção um templo da Universal. O projeto é uma incógnita, mas deve seguir as linhas monumentais e cênicas dos outros endereços da franquia religiosa. Anunciou-se na ocasião que terá heliponto e anfiteatro, entre outros equipamentos espetaculares. Banners no tapume oferecem esboço do templo que virá. Mas sobrou uma parte do conjunto, e esse é o ponto.
De todo o complexo fabril “Matte Leão” ficou em pé apenas uma edificação art déco, da década de 1930, na Avenida Getúlio Vargas com a Rua Piquiri. De 2011 para cá, o local – onde chegou a funcionar o museu da ervateira – se tornou uma espécie de última trincheira da preservação. Dessa vez, a pressão deu resultado. O pequeno prédio não é Unidade de Interesse de Preservação do Município nem bem tombado pelo estado, mas graças à intervenção da Comissão de Avaliação Cultural, do Ippuc, o alvará de demolição foi indeferido, garantindo que a “Matte” não seja varrida do mapa. As informações são da Secretaria do Urbanismo e de fontes da reportagem. O Ippuc não se pronunciou.
Vale lembrar que a extinção da grande fábrica teve um efeito moral sobre pesquisadores de patrimônio. Desde que as obras do templo começaram, os esforços passaram a ser no sentido de impedir que outros endereços da região tenham o mesmo destino. É o caso do Mate Real, da Ambev, da Fiat Lux e Anaconda. O fórum avançou, tornou-se mais assertivo. Acabou “batendo na porta” do que sobrou da Matte, na Piquiri. Os administradores da Iurd teriam aceitado conversar e se convenceram de que preservar é o melhor negócio.
Campo minado
A salvação do pequeno prédio da Matte é, com folga, uma das melhores notícias da temporada. As perdas do patrimônio foram muitas na última década. Curitiba, para surpresa geral , não tem lei de tombamento – uma proposta tramita na Câmara Municipal – e vê ruir sua política de decretos e de unidades de preservação. De 2000 para cá, pelo menos uma dezena de proprietários de bens de interesse ganharam em série, na Justiça, os alvarás de demolição. Uma casa assinada pelo modernista Ayrton Lolô Cornelsen, na Rua José de Alencar, é o caso. Era unidade de interesse. A Justiça desconsiderou.
Nesse cenário, o futuro da paisagem fabril parecia cada vez mais incerto. Da Todeschini restou uma chaminé. Da Móveis Cimo, nada. Para parcela da administração pública, barracões onde circulavam operários não precisam ser preservadas, opinião que vai na contramão das políticas internacionais. Exemplo? O Sesc Pompeia, em São Paulo; o Museu da Eletricidade de Lisboa... “A preservação não passa só pela arquitetura, passa pela história”, rebate uma autoridade no assunto, a arquiteta Rosina Parchen, diretora de Patrimônio da Secretaria da Cultura do Paraná.
Parte da resistência em preservar a paisagem fabril do Rebouças tem a ver com o avanço imobiliário dos últimos cinco anos. O bairro voltou à moda depois de décadas de estagnação. O zoneamento favorece o erguimento de condomínios verticais, sem dizer que se trata de um lugar estratégico. O Ippuc não escondia que via no avanço do Rebouças uma saída para revitalizar seu vizinho, o Centro. Para fazer cumprir essa carta de intenções, o “alerta” não foi emitido antes da compra da fábrica – vendida por R$ 32 milhões pela família Leão à Universal.
Em resumo, as políticas de preservação correm em campo minado. Saída? Só uma ação conjunta entre cidades, estado e União pode garantir que episódios como o do Matte Leão não virem regra. “Sem o interesse do município não há fiscalização e nenhuma política cultural sobrevive”, reforça Rosina Parchen.
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