Os cobradores da linha de ônibus Rio Bonito desenvolveram uma habilidade comparável à dos balconistas de farmácia no que se refere a diferenciar nomes. Em seu trajeto, o ônibus passa por quatro ruas batizadas com o sobrenome Bertoldi, todas localizadas no loteamento popular que dá nome à linha. Estas quatro vias, por sua vez, são paralelas ou esquinas de outras 18 que também homenageiam a família – praticamente o bairro todo. Por vezes, o passageiro que não conhece a região aborda o cobrador com o nome incompleto da rua (Antônio e Antônio Giovanni são duas ruas distintas), ou comete o equívoco simples de trocar João por José, ou José por Luís, ou Luís por João. Descobrir em qual ponto descer se torna um exercício de intuição – e sorte.
A onipresença da família Bertoldi nas plaquinhas azuis virou motivo de reclamação entre os moradores deste conjunto do bairro Campo de Santana, na região sul de Curitiba. “Pela minha experiência de seis anos na região, não ficou bom. A gente se confunde muito”, reclama o técnico em eletrônica Giovanni Paul, 42 anos, morador da Rua Alda Basseti Bertoldi. “Meu marido fez um cartão de loja, mas o motoboy não conseguiu encontrar o endereço”, ilustra a dona de casa Marinete da Conceição, 51 anos, que pode ser encontrada na Luís Bertoldi.
Hugo Harada/ Gazeta do Povo
Ônibus que serve o conjunto passa por quatro ruas “Bertoldi”: nomes são motivo de confusão
Escolas “Sarney”
Uma reportagem do jornal O Globo publicada no mês passado contabilizou 161 escolas maranhenses batizadas com o nome de um membro da família Sarney. No texto, o veículo destacava que, no ano em que Paulo Freire (1921-1997) foi declarado patrono da educação brasileira, seu nome foi retirado de uma instituição de ensino para dar lugar ao da governadora Roseana Sarney. Desde 1965, quando José Sarney (PMDB) assumiu o governo maranhense, o grupo do atual presidente do Senado venceu dez eleições para governador e chefiou o Executivo local por 41 anos.
O excesso apontado pelos moradores acabou por criar um efeito contrário ao pretendido pelos responsáveis pela homenagem. O sobrenome desta família tradicional de Curitiba, com mais de 200 anos de atuação na cidade, foi suprimido na forma corrente de se referir aos endereços, substituído por um tratamento restrito aos primeiros nomes. “Essa é a Marcos. A próxima é Antônio, duas depois é Pia Lazzari, depois vem Augusto, Joaquim, Lygia, Antônio Giovanni, Bruno, João, José e Luís, que é o fim do bairro”, elenca Joaquim Monteiro, um entregador de gás de 59 anos, que afirma ter demorado três meses para assimilar as direções.
Influência política
A associação das Moradias Rio Bonito com a família Bertoldi ocorreu sob a influência de Osmar Bertoldi, deputado estadual, ex-vereador e ex-secretário de Política Habitacional em Curitiba. Quando membro da Câmara Municipal, em 1999, Osmar foi autor do requerimento que possibilitou o uso do terreno para o programa de moradia popular da Cohab-Curitiba.
Em seu site oficial, o político filiado ao Democratas aponta a criação das Moradias Rio Bonito como uma de suas principais realizações políticas. Bertoldi não quis conversar com a reportagem, mas, por meio de sua assessoria de imprensa, destacou não ter sido o autor dos projetos que batizaram as ruas do bairro com sua árvore genealógica.
Os projetos de lei foram apresentados em 2001 pelo então presidente da Câmara, João Cláudio Derosso (atualmente sem partido), e desde então passaram a constar de um banco de nomes aprovados que ficam à disposição da Secretaria Municipal de Urbanismo, que passa a usá-los conforme a disponibilidade de novas ruas criadas. As Moradias Rio Bonito são formadas por 6.220 lotes distribuídos em 1,3 milhão de m². As unidades foram entregues entre 2003 e 2004.
Pioneiros são quase sempre esquecidos
As homenagens coletivas a famílias em ruas da cidade costumam evocar a fundação e crescimento das comunidades, segundo a arquiteta Camila Muzzillo, organizadora do livro 1001 Ruas de Curitiba. “São as famílias fundadoras. Geralmente, trata-se de imigrantes que tiveram uma atuação no comércio e desenvolvimento do bairro.”
A memória dos pioneiros tende a ficar obscurecida com a crescente urbanização e a entrada de novas gerações de moradores. Após décadas, a única lembrança passa a ser justamente o nome da rua, mas a citação carece de contextualização em relação à história da região. “Os nomes remetem imediatamente a uma determinada época. Mas muitas vezes as pessoas moram ali há anos e não foram apresentadas ao cidadão que figura em seu endereço”, destaca Lourival Peyerl, supervisor de informações do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc).
Atrás dos Bertoldi, a segunda família mais representada nas ruas de Curitiba é a Geronasso, dona dos 500 hectares de terra que se transformaram no bairro Boa Vista. Os membros da família Nicco, tornados nomes de rua no Mossunguê, são descendentes do imigrante italiano Grã Nicco (ele também uma rua), que se estabeleceu na região no século 19 e doou o terreno em que foi construída a igreja do bairro.
Breve histórico
Em 2009, o então vereador Roberto Aciolli (PV) apresentou um projeto para que os logradouros públicos tivessem uma placa com um breve histórico do homenageado. O projeto teve de ser retirado de tramitação no ano seguinte, quando Aciolli renunciou ao mandato na Câmara para assumir uma cadeira na Assembleia Legislativa. “A busca por essas informações não é um costume. As placas trariam a possibilidade de conhecer um pouco da história da cidade”, justifica o parlamentar.
Nos últimos sete anos, o Ippuc vem criando um banco de dados com a história das ruas. Atualmente, um terço dos logradouros já foi pesquisado. “A base das informações são os projetos de nomeação arquivados na Câmara, mas estamos indo atrás de dados adicionais”, afirma Peyerl.
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