A merendeira Sebastiana Duruek, hoje com 83 anos, que o diga. “Quando despertei vi que a situação não estava fácil. Tinha ido trabalhar no dia anterior, mas nesse dia não dava. Na frente de casa estava tudo alagado”, recorda.
O livro de Irene
Aos 82 anos, Irene Winter guarda na primeira página da Bíblia dada de presente pela mãe uma das emoções mais fortes pelas quais passou. A foto colada na página amarelada mostra o filho Walter, ela e o falecido marido em cima do telhado de casa tentando salvar o que podiam da enchente. Depois que o rio baixou, a Bíblia, impressa em 1925 na Alemanha, foi um dos poucos livros que sobraram. Ao lado dela, parte de uma obra que pertencia ao pai – Os pássaros do Brasil, de Eurico Santos – pôde ser resgatada.
As preces para evitar uma nova tragédia vêm das sagradas escrituras. “Única coisa que peço a Deus é para não repetir uma enchente dessas”, conta Irene. Já cansaram de falar para ela restaurar a Bíblia. Mas Irene prefere manter as páginas com as marcas de lama e com os danos provocados pela água. “É uma prova de que a fé existe.” Em julho de 1983, ela morava em uma casa, que hoje pertence a um dos cinco filhos, no bairro São Bernardo. A moradia fica a 400 metros do leito do rio, mas a força da água de 30 anos atrás chegou ao teto da residência.
Para tentar salvar alguns móveis e roupas, eles entravam na casa de bote, com uma vela presa a uma garrafa. “Não parecia algo real. Não parava de subir água. A gente estava anestesiado. Não entendia o que estava acontecendo.” Após longa estadia em casa de parentes, voltou para a residência em setembro. “Fomos arrumando o que podíamos.”
Heróis anônimos salvaram vidas
Ivan Andrukiu passou a noite que antecedeu o grande alerta em uma churrascaria com os colegas do Exército. No dia seguinte teria instruções sobre explosivos. Chegou às 5 horas no quartel e logo a programação caiu por terra. “O tenente recrutou todos para salvar as pessoas. Voltei para minha casa 15 dias depois. Mal dormi nesses dias. Não sei nadar, mas colocava um colete salva-vidas e ia”, conta Ivan, na época com 18 anos.
Foram duas semanas sob água. Ele foi um entre as centenas de bombeiros e militares que tentavam evitar o pior. Ivan entrava nas casas pelos telhados e também ajudava no transporte de alimentos e água potável. “Chegava em lugar que a água batia na cintura e em pouco tempo já estava perto do tórax.”
Noites mal dormidas
Outro soldado que atuou nos resgates foi o hoje comerciante Solimar Haiduk, de 48 anos. “Tirava famílias que estavam com as casas alagadas, fazia trouxas de roupas, documentos e o que se salvava de comida”, relata. Naqueles dias, ele dormiu apenas duas horas por noite. “Vimos casas desaparecerem, mas procuramos salvar vidas”, diz.
Sem titubear, arrumou uma muda de roupa e seguiu para o lar de uma das irmãs. Só conseguiu voltar dois meses depois, quando o volume de água havia baixado e a residência, sido reformada. Durante 45 dias, 80% da cidade ficou debaixo da água. Porto União, município catarinense vizinho, teve 30% da área tomada pela enchente.
Água que não acabava
Historicamente, a média de chuva entre os meses de junho e julho na cidade situada ao Sul do Paraná é de 138 milímetros. Há 30 anos foi de 800 milímetros. “Choveu em um mês o que era previsto para seis meses”, relata o pesquisador Dago Woehl, presidente da ONG Comissão Regional de Prevenção contra Enchentes do Rio Iguaçu. A situação se agravou no dia 9, quando a altura das águas chegou a 8,92 metros. “Aumentou mais de três metros em dois dias”, diz Woehl.
A partir do dia 15, o rio atingiu a incrível marca de dez metros, tendo o ápice três dias depois, com 10,42. O rio só começou a recuar no dia 22 de julho, mas no final do mês a marca ainda era superior a 8,30 metros. A média normal do Iguaçu é de 2,5 metros.
Cenário desolador
Sem água potável, sem eletricidade e sem comida. A alimentação só chegava de helicóptero. Mais de 7,5 mil casas e prédios tomados pela enchente, com um total de 60.330 desabrigados – segundo dados da Defesa Civil. Lojas e mercados destruídos, 500 fábricas paralisadas. Um prejuízo estimado na época de US$ 52 milhões. A vazão da água, que geralmente é de 500 m³ por segundo, foi dez vezes superior.
Apesar dos números assustadores, os dados oficiais não indicam mortos. “As casas que ficaram salvas chegaram a abrigar 30 pessoas”, afirma Woehl. Os 90 abrigos coletivos não eram suficientes para alojar tantas vítimas.
Depois de 45 dias, com o Iguaçu perto do nível normal, o cenário era comparável ao de um pós-guerra. Sebastiana lembra que a cidade estava sem perspectivas. “Tinha um cheiro forte e ruim, casas destruídas, animais mortos. Foram de dois a três anos para a cidade se parecer ao que era antes.”
Após o trauma, prevenção virou palavra de ordem
Passados 30 anos da grande enchente, dificuldades persistem em União da Vitória e Porto União. Sempre que a chuva aperta, o Iguaçu sobe e não perdoa a casa dos ribeirinhos, como a de José Morais, de 54 anos. Se em 1983 teve de abandonar a casa por um mês no bairro São Cristovão. Hoje ele dribla as dificuldades com seu barco. Mudou-se para outra localidade, São Bernardo, mas a atual moradia fica a apenas 30 metros do leito do rio em dias normais. “Quando chove, não tem jeito. A água invade o terreno”, diz. Ele se preveniu e levantou a casa para evitar que a enchente entre. Na semana passada, não adiantou. A cidade foi atingida por fortes chuvas, que desabrigaram centenas de moradores e resultaram em prejuízos de R$ 21 milhões e no decreto de situação de emergência.
Para minimizar os problemas provocados pelas enchentes, as prefeituras de União da Vitória e Porto União adotam medidas de prevenção. Algumas já estão em prática. Como é o caso do monitoramento 24 horas, durante os 365 dias do ano, da altura do rio. Dessa forma, se há uma cheia se aproximando, as comportas da Usina Hidrelétrica de Foz do Areia – a 110 quilômetros – são abertas, controlando o volume de água.
Outras medidas
Recentemente foram retiradas 160 das 300 famílias que moravam em área de risco em União da Vitória. Até setembro de 2014 deve ficar pronto um parque linear na beira do Rio Iguaçu para evitar ocupações irregulares.
Voluntárias montaram cozinha comunitária para alimentar desabrigados
Sebastiana Duruek, 83 anos, e seu filho Joelcion, 48, lembram como se fosse hoje o desespero das pessoas para fugir da cheia do Rio Iguaçu, em União da Vitória. A dificuldade fez o filho, ela e mais 23 familiares dividirem a casa da irmã por dois meses. Merendeira de mão cheia, ela viu que poderia ser útil. Foi uma das cozinheiras das 35 cozinhas coletivas montadas em União da Vitória. Sebastiana se virava com o que vinha das doações que chegavam por helicóptero. “Comíamos polenta, arroz, feijão, charque, macarrão”, conta Joelcion, que não titubeou e ajudou a mãe.
Cozinhava, organizava a entrega dos alimentos e ainda retirava os bens das casas dos moradores da região. “A gente procurava se ajudar. A solidariedade aumentou muito nesse período”, relata. Como não havia muito espaço, a casa da irmã de Sebastiana transformou-se em cozinha comunitária. Atuando como voluntários, cozinhavam mais de 20 quilos de arroz por dia e alimentavam mais de 200 famílias diariamente. Essa saga durou até o rio abaixar. “Eu me sinto uma pessoa realizada, não medi esforços para ajudar os outros”, relata Sebastiana.
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