Três em cada quatro assassinatos registrados em Curitiba têm relação direta com as drogas. A constatação é de um levantamento feito pelo serviço de inteligência da Delegacia de Homicídios (DH), com base nos boletins de ocorrência. Das 357 pessoas assassinadas no primeiro semestre deste ano na capital, 274 tinham envolvimento com entorpecentes, seja como usuário ou traficante. Para as autoridades, os números comprovam que as drogas representam o principal problema a ser enfrentado pela segurança pública no estado.
As estatísticas apontam que 108 traficantes morreram na guerra pelo tráfico, enquanto 166 usuários foram assassinados: de cada dez homicídios diretamente relacionados às drogas registrados na capital, seis foram de pessoas que apenas faziam uso de entorpecentes. O levantamento aponta que houve pouca oscilação em comparação com o mesmo período do ano passado, quando 74,7% dos homicídios tiveram relação direta com as drogas. O número de usuários assassinados, no entanto, era maior: 71,1%.
“Os números comprovam que as drogas são o principal problema da contemporaneidade e motivador não só de homicídios e de outros tipos de crimes como roubos e furtos, mas responsáveis também por distúrbios sociais, como conflitos familiares e de relacionamentos”, avalia o professor de Sociologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) Lindomar Boneti.
Cinco bairros concentram 49% dos casos
Os bairros da área central ou norte da capital foram palco de apenas 16% dos homicídios relacionados às drogas. Os outros 84% – ou 230 assassinatos – se concentraram em localidades do sul de Curitiba. Cinco dos 75 bairros concentram quase a metade (48,9%) dos homicídios vinculados ao tráfico ou uso de entorpecentes: Cidade Industrial, Uberaba, Sítio Cercado, Cajuru e Novo Mundo.
O sociólogo Lindomar Boneti defende que o fenômeno está associado às condições socioeconômicas dos locais onde os crimes ocorrem. “A iniciativa [de se envolver com as drogas] não parte da periferia, mas a periferia acaba cooptada e envolvida nesta questão, por sua condição de vulnerabilidade”, diz.
Para o delegado Riad Farhat, além do viés social, há outra explicação para o fato. Ele explica que os traficantes e seus “quartéis-generais” se encontram, principalmente, em bairros periféricos e na região metropolitana. Além disso, Farhat menciona que o tráfico e seus agentes têm uma dinâmica própria em cada região. “Nesses bairros onde se mata mais, o tráfico tem um histórico crônico de violência. Mas isso não significa que em outros locais não tenha tráfico.”
Tragédias pessoais
Embora uma parcela significativa dos usuários de drogas tenha sido assassinada por não ter quitado dívidas com traficantes, a questão não se restringe a este aspecto. A delegada Maritza Haisi, chefe da DH, explica que boa parte dos homicídios envolvendo pessoas que faziam uso de drogas ocorreu porque as vítimas se envolveram em situação de risco por causa dos entorpecentes. “Para conseguir manter o vício, alguns usuários partem para os delitos. Essas situações geram desdobramentos. Os usuários acabam sendo mortos em decorrência destes crimes”, aponta.
Em relação à morte de traficantes, a dinâmica é outra. Segundo o delegado Riad Farhat, da Divisão de Narcóticos (Denarc), os homicídios ocorrem por dois motivos básicos: confronto pelo controle de pontos de drogas ou por desacerto entre os criminosos. “Para comprar grandes quantidades de entorpecentes, os traficantes se organizam em uma espécie de consórcio. Na partilha da droga, não é raro ocorrer desentendimentos, que acabam gerando conflitos internos e integrantes de um mesmo grupo acabam se matando”, explica.
Outra característica mencionada pelas autoridades é que os homicídios vinculados aos entorpecentes, em geral, estão relacionados uns aos outros. O delegado Jaime da Luz, responsável por investigar mortes ocorridas em bairros como Uberaba e Cajuru, aponta que os “personagens” dos crimes costumam se repetir com frequência. “Uma pessoa mencionada como testemunha em um inquérito aparece como suspeita de homicídio em outro caso. Há muitos crimes interligados.”
Para o delegado Rubens Recalcatti, responsável pelo grupo Homicídios Não Resolvidos (Honre), que investiga casos anteriores a 2008, o alto índice de mortes relacionadas às drogas não é um fenômeno recente. “Nos antigos, percebemos que o porcentual é muito parecido com os atuais”, avalia. Policial há 31 anos e delegado há 16, Recalcatti observa que os entorpecentes sempre tiveram impacto direto na segurança pública, mas ressalva que o problema se agravou consideravelmente nos últimos dez anos. “O Estado negligenciou seu papel. O resultado é este. Infelizmente”, lamenta.
Especialistas contestam o levantamento
Os dados apresentados pela polícia, no entanto, não são unanimidade entre os especialistas. Para o economista do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) Daniel Cerqueira a metodologia utilizada pelas autoridades não é capaz de fornecer uma leitura real da questão. “Desconfio que esses dados sejam um absurdo ou um ‘chute’. Com certeza a droga é um problema a ser resolvido, mas colocar a culpa do colapso da segurança na droga é simplismo. Com esse discurso, as autoridades tentam, subliminarmente, se eximir da responsabilidade e atribuir o problema somente a uma questão social”, diz.
Em seu doutorado, Cerqueira se debruçou sobre índices de criminalidade de duas décadas. Ele descobriu que 5% dos crimes relacionados às drogas são cometidos por usuários sob efeitos psicofarmacológicos das drogas. Outros 95% estão relacionados ao que ele chama de “violência sistêmica”, consequência da disputa entre traficantes e de mecanismos de controle adotados por eles. “Não temos condições de aferir quanto isso representa no total de homicídios, mas com certeza é um porcentual extremamente menor do que o propalado pelas autoridades”, afirma.
O ex-secretário nacional de Segurança Pública o coronel José Silveira é mais enfático. Para ele, o índice de homicídios relacionados às drogas não passa de 20%, em qualquer parte do país. “Eu desafio qualquer autoridade policial a comprovar que passa deste patamar [20%]”, disse. Na avaliação de Silveira, a associação entre assassinatos e entorpecentes virou “lugar comum”. “É uma desculpa esfarrapada que a polícia usa para desviar o foco e para não admitir que falhou”, diz.
Fonte: Gazeta do Povo 04/08/2011
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