Passa do meio-dia quando o Renault Fluence preto avança pela Rua João Águida, no bairro Santa Quitéria, em Curitiba. O carro para e por uma das portas traseiras sai o subcomandante geral da Polícia Militar, coronel César Alberto Souza. O policial que está ao volante desce e presta continência. Pelo lado oposto, outro policial também sai do veículo, entrega uma pasta preta ao coronel e se despede. Após um breve aceno aos colegas de farda, César entra em casa a passos lentos. Naquela quarta-feira, 4 de abril, dia de meio-expediente na PM, o coronel não voltaria ao quartel.
Esta seria apenas mais uma cena comum do cotidiano não fossem dois detalhes: o carro é uma viatura descaracterizada da PM e um policial foi retirado de suas funções para servir de motorista ao subcomandante. O veículo seguiu para o 12.º Batalhão da PM, onde um dos policiais permaneceu. Em seguida, o veículo saiu rumo ao 13.º Batalhão. O fato do dia 4 de abril não foi uma coincidência. Quase um mês depois, em outra quarta-feira, a reportagem voltou às proximidades da residência do coronel e, novamente, ele era conduzido para casa por outros policiais. Também num Fluence preto da PM.
A exemplo do que acontece na Polícia Civil do Paraná, como revelou a Gazeta do Povo na série “Polícia Fora da Lei”, membros do alto comando da PM também usam viatura descaracterizada para atividades particulares. Parte do dinheiro usado na compra de viaturas da PM sai do Fundo de Reestruturação do Departamento Trânsito, ou seja, recursos de multas usados para comprar viaturas que servem como “mordomóveis”, sem que os policiais tenham prerrogativa para isso. Também é costume entre oficiais na corporação o desvio de um ou mais policiais para servir de motorista particular.
O coronel
Responsável pelo 1.º Comando Regional da Polícia Militar em Curitiba, o coronel Ademar Cunha Sobrinho foi flagrado duas vezes pela reportagem indo almoçar em casa com uma viatura da corporação, nos dias 7 e 8 de maio. Cunha desloca um soldado de suas funções para servir de motorista em seus deslocamentos, com uma Blazer placa ASP-3895, comprada com verba do Fundo de Modernização da PM. O coronel também dispõe de uma Renault Scénic, placa AOK-7886, viatura descaracterizada. Embora não a use no cotidiano, Cunha a deixa ao relento no pátio de casa, no bairro Boqueirão, em Curitiba.
O tenente-coronel
Quem também usa um mordomóvel é o chefe da 6.ª seção do Estado-Maior da Polícia Militar, o tenente-coronel Lanes Randal Prates Marques, responsável pelo planejamento de orçamento e aplicação de recursos financeiros da corporação. A mando do oficial, um soldado usa o Logan AQY-7958 para buscar uma menina no Colégio Medianeira, no bairro Prado Velho. Dali, ele leva a estudante até o condomínio Alphaville, em Pinhais.
O major
O major Maurício César de Moraes, do Estado Maior da Polícia Militar, mora no bairro Cajuru e costuma levar o filho ao Colégio Militar de Curitiba, no Tarumã. Usa para essa finalidade o Logan placa AQZ-8163. No flagrante do dia 14 de março, por exemplo, buscou o filho na escola, deixou-o em casa às 12h45 e às 13h15 saiu levando na viatura duas mulheres em direção ao centro da cidade. Fardado, ele fez o trajeto de casa para o colégio do filho, um percurso de 8 quilômetros.
O sargento
O emprego particular de viaturas descaracterizadas se espraia também pelos escalões menores da PM. A reportagem flagrou o sargento Elacir Berti no dia 28 de março com o Renault Logan, placa ARD-6648. Fontes de dentro da PM confirmam que Berti é motorista de um oficial e fica à disposição para buscá-lo e levá-lo onde for necessário. Berti está lotado no Regimento de Polícia Montada e foi flagrado saindo de casa com o veículo no bairro Boqueirão.
Gaeco investiga caso antigo de mordomóvel
O uso particular de carros oficiais é prática antiga na Polícia Militar, conforme revela investigação feita pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) de Cascavel, no Oeste do Paraná. A partir de denúncias recebidas por telefone, em 15 de abril de 2010, o Gaeco passou a monitorar o major Wellington Alves da Rosa, à época comandante do 19º Batalhão da Polícia Militar de Toledo.
Na ocasião, o major usava o Honda Civic ATW-1112, apreendido com 300 quilos de maconha e cedido em depósito judicial por uma vara criminal de Toledo para uso exclusivo do serviço reservado do Batalhão, com destinação específica conforme o artigo 61 da Lei 11.343/06. Wellington se deslocava diariamente para a casa dele, em Cascavel, com o Cívic, abastecendo na cota de combustível do 19º BPM. Em três meses, consumiu 1.064 litros de gasolina.
Depois da denúncia, uma equipe do Gaeco rastreou a viatura. O major a estacionou dia 15 de abril de 2010 na vaga de um apartamento do Edifício Açores, em Cascavel. Só saiu às 14h30 do dia 18, indo direto para o 19.º BPM de Toledo, onde abasteceu na bomba de combustível da unidade. Pouco antes das 18h30 retornou para Cascavel, onde estacionou a viatura às 19 horas na frente da casa do casal de sargentos Leila e Cornélio.
Wellington retornou para seu apartamento em Cascavel por volta das 23h30, depois de participar de um churrasco com militares. No dia seguinte, às 07h20, se dirigiu ao 19.º BPM. Ao chegar, por volta das 8 horas, o carro foi apreendido pelo coordenador do Gaeco de Cascavel, Sérgio Ricardo Cezaro Machado, acompanhado do promotor da Defesa do Patrimônio Público de Toledo, José Roberto Moreira, e do Comandante do 6.º Batalhão de Polícia Militar de Cascavel, tenente-coronel Celso Luiz Borges. Depois desse episódio, major Wellington ainda usou por algum tempo a Scénic AOJ-2202, também viatura descaracterizada da PM.
O promotor José Roberto Moreira, que avaliou o caso na área cível, explicou que o uso indevido de viaturas pelo major ainda está sendo investigado na própria vara. Segundo ele, o oficial admitiu que usava o veículo e alegou ter o direito de usá-la, inclusive com motorista. Questionado sobre a demora na conclusão do caso, o promotor ressaltou que apenas ele e mais um funcionário trabalham na vara. Ele explica que há 704 investigações extrajudiciais em andamento. Além disso, o trabalho é somado ainda ao atendimento ao público, audiências, toda parte judicial e extrajudicial, das áreas de saúde pública, tribunal do júri, patrimônio público, fundações, garantias constitucionais e direitos humanos. O promotor lembrou ainda que o único funcionário que trabalha com ele chegou em março deste ano.
Já o promotor da Vara Militar, Misael Duarte Pimenta Neto, disse que remeteu os casos do major para o Gaeco de Cascavel para mais diligências e que ainda não voltou para a promotoria. Pimenta Neto é responsável por verificar se os casos envolvendo policiais configuram crime militar.
Fonte: Gazeta do Povo 30/05/2012