segunda-feira, junho 27, 2011

A Curitiba do sereno


Quem passa apressado estranha a movimentação em frente da Catedral Metropolitana de Curi­tiba, terça-feiras à noite. Cantos e rezas a essa hora? Indiferente aos olhares, um grupo ganha corpo e principalmente voz. A de “Dirceu”, que acompanha a movimentação um pouco mais afastado, é rouca e baixa. Mesmo assim, ele não economiza esforços ao falar da “família” que o acompanhou em boa parte dos seus 23 anos.

“Vi muitos amigos morrerem de frio”

Dirceu, nome fictício, morador em situação de rua

Natural de São José dos Pinhais, “Dirceu” passou a infância nas ruas de Curitiba. Na adolescência, voltou a morar com a família, mas, após a mãe ter sido presa e ele ter sofrido um acidente grave, voltou para a rua. Hoje, aos 23 anos, trabalha em uma empresa de bebidas e mora com o pai.

“A rua é um sofrimento. Chega uma hora em que a gente se vê todo descabelado, já não sente mais gosto pela vida e as pessoas nos veem como um ladrão.

Na rua eu vivia com muita gente, que trato como minha família. Afinal, quem andava sempre ao meu lado, nas piores horas, eram essas pessoas. Mas sofri muito porque vi vários amigos morrerem de frio. Chegava o inverno, o cara deitava ali na laje tremendo e de repente estava morto.

A gente sempre pedia comida, ia nos restaurantes, sabia dos lugares que iam oferecer refeições. Eu não minto: fome a gente não passa, mas uma coisa que machuca é ver um irmão teu morrer, não só de frio, mas por causa da bebida alcoólica.” (RW)

Povo da rua forma família e tem orçamento

Aparentemente dispersos e caóticos, os moradores em situação de rua possuem graus de organização, ocupam locais específicos e até formam famílias. São, na maior parte, adultos. Dados da Central de Resgate Social da Fundação de Ação Social (FAS) de Curitiba mostram que do total de pedidos de atendimento e resgate por meio do telefone 156, de janeiro de 2010 a março deste ano, apenas 6% fazem menção a crianças.

De acordo com Jussara Dias, professora do curso de Serviço Social da UniBrasil, a união dos moradores se dá por afinidades naturais, mas também por necessidade de proteção. Com o tempo, os laços afetivos se intensificam.

“São pessoas que geralmente andam juntas e se mobilizam pelas suas necessidades básicas, montando redes de relacionamento. Em casos extremos, os grupos chegam a brigar”, comenta Jussara, que também é diretora do Centro João Durvalino de Borba, unidade da FAS que atende o povo de rua.

Solange Fernandes, da PUCPR, relata que, em geral, os núcleos de moradores possuem uma liderança, vista como o “pai” ou a “mãe” da “família”. Cabe a esses líderes distribuir tarefas, decidir os locais onde se instalarão e o quanto necessitam para viver naquele dia. “Também é possível observar uma distribuição de tarefas entre eles. Todos têm uma função ‘produtiva’ no grupo. Eles se protegem, brigam, compartilham o que é bom e o que é ruim também”, diz Solange.

A existência de laços de afeto é comprovada por quem já viveu na rua. A convivência em comum, po­­­­rém, é uma via de mão dupla. “O morador de rua tem o caráter de ser solidário. Mas às vezes isso é ruim, porque ele acaba tendo contato com pessoas que consomem álcool e drogas, e é levado a isso também”, relata o ex-morador de rua Leonildo José Monteiro Filho, hoje coordenador do Mo­­vimento Nacional da População de Rua. (RW)

Parte dela está ali ao lado. Haja cômodos para tanta gente. Espaço pelo menos há. Afinal, a Praça Tira­­­­den­­tes é grande, assim como tantas outras praças, ruas, casarões abandonados e terrenos baldios da cidade. Foi nestes locais que, acompanhado dos “irmãos”, “Dirceu” dormiu, comeu, bebeu e chorou nos últimos anos. “Dirceu” é um morador de rua.

Pelo Centro
Há sete anos o encontro de oração reúne o povo da rua em frente da Catedral. Nos encontros das terças, os participantes recebem alimentos e agasalhos, além da bênção dos agentes de pastoral. Homens e mulheres chegam aos poucos. Mui­­tos são velhos conhecidos. Vêm de perto, posto que a grande maioria está abri­­gada no Centro. Porém, o grupo é pequeno diante do número estimado de moradores de rua da capital – 2.776 pessoas, segundo levantamento de 2008 do Ministério de Desenvolvi­mento Social e Combate à Fome.

Pesquisa em andamento, coordenada pela professora doutora Solange Fernandes, da PUCPR, pre­­tende atualizar os números e de­­­­talhar o perfil de quem usa cal­­çadas e escadarias como lar (leia entrevista ao lado). Dados da Fun­da­­­ção de Ação Social (FAS) e pesqui­sas na área ajudam a entender o comportamento dessa população.

Conforme balanço das ligações pelo 156 à Central de Res­­gate So­­cial da FAS, as ruas mais visadas pe­­­los sem-teto são a Presi­dente Affonso Camargo, Sete de Se­­tem­bro, José Loureiro e XV de Novem­bro (veja infográfico), nas imediações de pontos como a Rodofer­roviária e Terminal Guadalupe.

A preferência pelo Centro não se dá por acaso. “É nessas regiões que tudo acontece. É ali também que existe a maior concentração de serviços de atendimento a mora­­­­dores de rua. O grande número de lanchonetes e restaurantes contribui”, observa Solange.

O movimento na região também explica a quantidade de chamados à Central de Resgate Social. Só nos primeiros três meses deste ano foram 3.280 ligações para o 156 apontando a presença de moradores de rua. A maioria dos telefonemas (45%) falava de gente dormindo ou caída nas ruas.

“Durante o dia, não há um espaço onde essas pessoas se sintam acolhidas. Por isso, se espalham, principalmente pelas praças. Não ter um local para dormir é o pior. Ainda mais em Curitiba, onde faz muito frio”, lembra o coordenador do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) no Paraná e ex-morador de rua, Leonildo José Monteiro Filho.

Fonte: Gazeta do povo 27/06/2011

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