segunda-feira, junho 03, 2013

Para acabar com o “carma” da Saldanha

Henry Milleo / Gazeta do Povo / A banda Watch Out for the Hounds tocou no sebo Acervo em um sábado recente
Há provas de que a primeira pergunta que se ouve de alguém interessado em alugar um imóvel na Rua Saldanha Marinho, no trecho entre a Catedral de Curitiba e a Visconde de Nacar, é: “Como é a rua?”. Uma resposta honesta, hoje, teria necessariamente de citar o sebo Acervo. Com seus eventos sabáticos – de shows de bandas “folk psicodélicas” a churrasquinho improvisado em meio à roda de viola –, o espaço dá um sacode na região. Da mesma forma, seria preciso discorrer sobre o Armazém Califórnia, point árabe que corajosamente colocou mesas e cadeiras na calçada; e lembrar do Centro Universitário Uninter, instalado no antigo prédio da Prosdócimo: seus alunos ajudam a revigorar naturalmente a quadra que já teve fama de maldita.
Às avessas do que houve nas ruas Riachuelo e São Francisco, a revitalização no trecho de paralelepípedo da “Sandália Marinho”, como Paulo Leminski gostava de frisar, acontece espontaneamente. De baixo para cima. Márcia Maria de Almeida e Claudemir Monteiro, sócios do sebo, brigam para deixar para trás o “carma” da rua outrora mal falada. Por isso, arriscam. “A ideia não é criar um espaço para show, mas para convivência”, diz Márcia. Deu certo.
Pescador e Seresteiro
Em um dos sábados recentes, sobre uma mesa improvisada, tiras de carne iam-se embora com nacos de pão. Em volta dela, violeiros endireitavam os chapéus e relembravam causos. “É diferente e muito importante para os jovens”, disse Luís Rodrigues, da dupla Pescador e Seresteiro. Luís levou seu neto de 5 anos e dividiu o “palco” com o garoto, que nunca tinha pisado na Saldanha. Na frente do espaço, curiosos perguntavam o que havia ali. Ao lado, o restaurante Bife Sujo abrigava alguns violeiros desertores com sua respeitada feijoada. É a rua em movimento, o âmago da tão perseguida revitalização.

Já há uma lista para bandas interessadas em tocar lá e fãs instantâneos, que entram no sebo para ver qual é. Criou-se também um túnel do tempo momentâneo, já que, nos sábados de viola, o instrumento passa pelas mãos de gente como Seu Nézio – compadre de Tonico e Tinoco –, João Roceiro e Seu Nestor da Sanfona, antigos protagonistas dos programas de auditório da rádio PRB2. “Quem passa na rua não resiste e entra. Aí comenta com outro, que vem na semana seguinte”, diz Monteiro. E assim vai.
À noite, persiste o duelo silencioso com usuários de drogas. Conta-se que um dos comerciantes da rua, dia desses, pôs para correr a gritos um jovem viciado que estava prestes a acender o cachimbo. “Não podemos ter medo, senão perdemos essa luta. Aqui, todo mundo se conhece. Se há algo de errado, a notícia corre”, diz Márcia.
Jovens
Na altura do número 131, entre a Alameda Dr. Muricy e a Rua do Rosário, 1,5 mil alunos circulam diariamente. São jovens estudantes do Uninter. “O lugar serve muito bem devido à boa localização. Os alunos não têm problemas para chegar”, conta Gabriel José Picler, um dos fundadores do grupo.
Antes da instalação da sede, no início da década passada, marginais rondavam o prédio desocupado. E o cheiro de urina beirava o insuportável. Hoje, a frequência de estudantes dentro e fora do espaço – alguns alunos matam aulas noturnas para continuar a conversa quando ela engata – dá cara nova, literalmente, a um trecho de uma rua que passa por um frutífero processo de autorrevitalização.
Projeto
Fenômeno serve como “puxão de orelha” para a prefeitura
Em 2004, um buchicho: imitando a Rua XV, a Saldanha Marinho poderia virar uma travessa só para pedestres. O plano subiu no telhado e nunca mais se tocou no assunto. Agora, com a revitalização espontânea no trecho mais central da rua de quatro quilômetros que corta a pomposa Praça da Espanha e segue até os arrabaldes do Campina do Siqueira, o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc) parece se animar novamente.
“Temos um olhar especial para as chamadas ‘ruas esquecidas’. A Saldanha faz parte delas”, diz Sérgio Pires, presidente do órgão. Para ele, o fenômeno que se vê por ali é “sensacional”. E também um puxão de orelha bem-vindo. “É uma chamada de atenção para nós, porque precisamos ter uma posição em relação a isso.”
Paralela à Cruz Machado, rodeada por hotéis de alta rotatividade e bares insones, a Saldanha Marinho, de acordo com Pires, precisaria fazer parte de uma proposta ao estilo yin-yang. “Esses dois universos precisam coabitar,” explica.
Apesar da animação com a boa notícia e do interesse em colaborar, o Ippuc não tem previsão de quando irá botar a mão na massa. “Não posso dizer quando, efetivamente, as melhorias chegarão à rua”, diz Sérgio.

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