domingo, abril 08, 2012

ogos de azar e outros bichos


Vistas como tradição inocente, ligada a sonhos e ao cotidiano, apostas escondem esquemas de corrupção e tragédias pessoais dos dependentes da jogatina

Todo mundo sabe que existe, onde funciona e conhece alguém que já entrou na portinha para apostar R$ 1 ou R$ 2 “na cobra ou no avestruz”. A cena do jogo do bicho – povoada de senhorinhas que sonharam com um animal e que decidem tentar a sorte – vai muito além dessa visão ingênua. A prática é proibida no Brasil, mas por trás dela se esconde uma rede organizada e à prova de repressão policial.

O jogo ilegal – o do “bicho” e os outros – é sustentado por pelo menos quatro eixos: o dos dependentes do jogo; o da corrupção policial e política que vive das apostas; o da lavagem de dinheiro feita pelos gerenciadores do esquema; e pelo fato de os jogos de azar não serem crime, mas “contravenção penal”, o que os torna ainda mais difíceis de serem combatidos.

Prova desse lastro são as próprias operações policiais: em apenas dois dias de março foram fechadas em Curitiba quatro casas de apostas. De janeiro até o momento, 292 máquinas caça-níqueis ou roletas foram apreendidas.

Quanto ao esquema de cor­­rupção, ele funciona pelas beiradas. De forma discreta, alguns políticos têm campanhas eleitorais financiadas por gerenciadores do jogo. Um caso recente envolve o bicheiro de Goiás Carlinhos Cachoeira, preso em fevereiro na operação Monte Carlo. Em troca, os políticos oferecem algum agrado, beneficiando os contraventores em alguma licitação pública. Há também delegados que recebem propina mensal para não estourar o esquema e para evitar que haja investigação nas denúncias. Os próprios gerenciadores do jogo lavam o dinheiro, já que não podem declará-lo oficialmente.

“O tratamento que a legislação brasileira dá hoje ao assunto é um caldo para se criar a corrupção”, afirma Leonir Batisti, coordenador estadual do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Cri­me Organizado, o Gaeco. Prova disso é que, quando os agenciadores são presos, respondem por contravenção penal. Ou seja: assinam um termo circunstanciado na delegacia e pagam pela atividade ilícita com multa ou serviço social. Jogo de azar não é crime.

Indignada, uma comissão do Senado resolveu apelar para a criminalização dessas práticas. Se aprovado, o anteprojeto de lei, a ser votado em maio, pretende colocar atrás das grades os bicheiros e os que lidam com caça-níqueis e outros jogos de azar. A detenção será de um a dois anos. Resta saber se a prisão terá força contra um costume tão enraizado no Brasil.

É o que se perguntam os defensores da legalização dos jogos de azar. Ao torná-los um crime, temem que as apostas corriqueiras de quem sonhou com esse ou aquele bicho sejam arrastadas cada vez para mais perto de condutas nocivas, como o tráfico de armas e a exploração da prostituição.

Sem saída
Combate escapa à ação da polícia

Um policial militar, que prefere não ser identificado, conta que já foi retirado dos serviços de rua porque fez batidas em lugares onde havia jogos de azar. “O coronel me disse que meu afastamento vinha de ordens superiores e que era para eu parar de colocar a cara lá [no jogo], senão eu iria me ferrar”, conta.

O advogado Ivanilo Alves da Silva pesquisou a relação entre órgãos de segurança pública e o bicho, em São Paulo, e estima que um policial ganha em média R$ 500 mensais para deixar os jogos de azar funcionando. Um delegado ganha o dobro disso.

Além de a própria estrutura da polícia ser prejudicada pela corrupção, gasta-se um tempo enorme para fazer a prisão dos envolvidos, que logo acabam soltos: o jogo não é crime, apenas contravenção.

Perdas e ganhos
Jogador compulsivo narra sua viagem ao subterrâneo

Aline Peres

“Neste momento senti que eu era um jogador. Senti isso como nunca até então. Minhas mãos tremiam... As têmporas pulsavam agitadamente ...”. O trecho do livro O jogador, publicado por Dostoiévski em 1866, ilustra o estado de espírito em que se encontrava André (nome fictício) diante de um mal que lhe afligia desde a adolescência.

Assim como o personagem Aleksei Ivanovitch, “o jogador”, ele sofria de compulsão, tendo passado por todas as fases reconhecidas pela medicina: ganho, perda e desespero. Hoje, aos 33 anos, diz-se livre da dependência psíquica do jogo. “Só por hoje”, diz, repetindo o chavão do grupo Jogadores Anônimos, que frequentou de 2000 a 2005.

Tudo começou de forma inocente, quando André tinha 16 anos. “Dia sim e outro também”, comprava bilhetes de Raspadinhas nas bancas. “Até perceber que tinha gasto todo o meu salário do mês”, conta. Não foi o bastante. A certeza de que ganharia o levou a furtar a família e o empregador. “Eu sentia culpa, mas a vontade não passava. Se ganhasse, poderia repor o dinheiro sem que ninguém soubesse.”

Aos 18 anos, entrou pela primeira vez em uma casa de bingo, a convite de uma amiga. “Ela foi embora e eu fiquei”, lembra. Literalmente. Nos quatro anos seguintes, o jogador abandonou a vida social, a namorada e a faculdade. Em 2000, fugiu para o Rio de Janeiro com R$ 5 mil retirados da mãe. Dois dias depois, a família o localizou. Encaminhado a uma clínica, aceitou participar do Jogadores Anônimos. Em 2005, deu-se alta e mudou para Londres.

André perdeu mais de R$ 100 mil em 12 bingos da capital e aumentou a “dependência cruzada” de cigarro e de bebida. “Eu sentia uma sensação de prazer descomunal”, confidencia. O jogo patológico é reconhecido pelo Código Internacional de Doenças.

Para o psiquiatra Dagoberto Requião, os sintomas de André são típicos e sujeitos a terapia, mas até o momento a compulsão não é tratada com remédios. “No início, o jogador se sente onipotente. Com as perdas, tenta justificar sua falência. Na fase do desespero, pode chegar ao suicídio. É uma prisão em círculo”, resume o médico. Dostoiévski bem sabia.

"FONTE" GAZETA DO POVO

Nenhum comentário:

Postar um comentário