Em janeiro deste ano, na esquina das ruas Lamenha Lins com Chanceler Lauro Müller, no Parolin, um grupo de moradores da classe média experimentou o sabor dos protestos populares. Organizados em guerrilha, os “parolinenses de cima” – como podem ser chamados, já que são gente da parte alta e mais urbanizada do bairro – queimaram pneus no asfalto, mandando sinais de fumaça para a Copel.
Motivo: nos seis meses anteriores ao motim, não passava dia sem que a luz caísse naquelas quadras. Para os manifestantes, a causa dos blecautes era só uma – a falta de infraestrutura para a construção, ali perto, de dois blocos de casas populares para reassentar 50 famílias de “parolinenses de baixo”, retirados das margens do Córrego Guaíra.
O bairro é de todos, diz Cohab
“Por que aqui e não em outro bairro?”, perguntam os moradores da zona nobre do Parolin – crentes que os reassentamentos da população favelizada na zona nobre vai reduzir ainda mais o valor dos terrenos do bairro. A resposta da Companhia de Habitação Popular de Curitiba (Cohab) é certeira: por que o Parolin pertence também a esses moradores. “Sabemos que se trata de uma operação difícil. Mas do ponto de vista do Estatuto da Cidade nossa atuação está correta”, diz a diretora técnica da Cohab, a arquiteta Teresa Gomes de Oliveira.
Teresa fala de cadeira. Ela participou dos principais programas de regularização fundiária da companhia. “Não podemos trabalhar urbanização com uma única diretriz. Não dá para ser rígido, adotando apenas uma política habitacional. O Parolin pedia um modelo híbrido. Aquelas famílias estão ali há 50 anos”, pondera.
Essa reflexão fez do “Projeto Parolin” um primor de pesquisa e uma dor de cabeça para todos os envolvidos. A comunidade dos ocupados não aceita de bandeja todas as diretrizes da Cohab. “É um processo complexo. Não vai ficar lindo, de uma hora para outra. Impossível ser um produto perfeito”, comenta Teresa.
Teresa fala em “pós-ocupação” – período de ajuste entre as duas comunidades. A Cohab vai ficar seis meses na área depois do término do programa, em 2012. E alimenta a certeza de que o governo federal não vai repetir o erro de outras gestões. O desejo é de periodicidade de recursos, investimentos e fiscalização do uso do solo. E de uma sociedade mais madura para lidar com o drama sem-teto. Já são horas. (JCF)
Hercílio Vicente de Lima e seu cavalo: dois assaltos na nova casa
Os maus humores entre a zona favelizada e a que lembra um condomínio de luxo é antiga. Basta lembrar que as primeiras ocupações na parte baixa do Parolin são da década de 1950. Naquela ocasião, uma Curitiba interiorana assistiu com espanto ao nascimento das vilas Parolin e Capanema (Torres). Nos anos 1980, a vilinha paupérrima do Parolin virou território de traficantes, vitimizando ainda mais seus 6 mil moradores, 45% do bairro. Os pobres sabem da tormenta que é ter a Cidade de Deus de um lado e o Morro do Sabão de outro, obrigando-os a um regime espartano para não desagradar a turma do crime organizado.
Em 2006, quando as primeiras assistentes sociais da Cohab bateram na porta dos barracos da baixada e iniciaram um recenseamento, o Parolin enfim respirou – com 50 anos de atraso. O trabalho dos técnicos teve duplo impacto: pela primeira vez se traçou um retrato em minúcias da favela mais antiga da cidade. E pela última vez os moradores da parte de cima acreditaram que os casebres seriam retirados dali.
É simples. Junto com as estatísticas da prefeitura veio o anúncio de que a turma de baixo seria sujeita a um modelo moderno de regularização fundiária: ficaria onde está, com a realocação de 677 famílias em outras áreas disponíveis, o que incluía o Parolin de Cima.
Está-se hoje a meio caminho andado. Atualmente, 295 famílias já moram na casa nova. Cada um desses grupos custou em média R$ 23 mil ao programa habitacional. Somando tudo, entre regularização e reassentamentos, o PAC Parolin soma R$ 20 milhões de investimentos do governo federal e mais R$ 17 milhões da prefeitura. Só as áreas compradas para erguer novas casas somam 79 mil metros quadrados. Eram terrenos baldios, alguns ladeados por mansões com vista para a Avenida Wenceslau Brás. Foi o princípio da confusão.
Os reclamantes, que já costumavam responsabilizar a favela por assaltos, fazendo do Parolin o melhor mercado da cidade para cercas elétricas, agora tinham mais uma queixa: com a “subida dos mais pobres”, os terrenos seriam desvalorizados. E a convivência com a vizinhança, insuportável. “Nosso maior medo sempre foi o lixo dos recicladores. Como lidar com isso?”, pergunta um morador da área nobre.
Não chegou a ser formada uma associação oficial. Longe disso, os parolinenses de cima são quase uma sociedade secreta. Falam com a imprensa, mas não se deixam fotografar ou dizem o nome. À Cohab não deram folga nos últimos quatro anos. E não só a ela.
Depois dos pneus, os descontentes mostraram mais uma faceta: desceram a ladeira da Brigadeiro Franco e foram às falas com o mítico presidente da Associação de Moradores da Vila Parolin e Guaíra, Édson Pereira Rodrigues, sem a ajuda de quem – diz a Cohab – a prefeitura jamais teria entrado nos 25 becos da vila para fazer saneamento, avaliar moradias ou atender os necessitados. É uma parceria controversa, que deixa em papas até veteranos do movimento social.
O que se sabe do encontro dos “de cima” com Edson é que tratou de um assunto caro aos mais ilustrados: o choque cultural. Os novos moradores das ruas Chanceler Lauro Müller e Eugênio Parolin trouxeram dos rincões costumes como acumular recicláveis no quintal das casas, fazer churrasquinhos na calçada, ouvir música alta e deixar crianças soltando pipas nas ruas. “Mentiram para a gente. Há casas com mais de nove pessoas. Vai favelizar”, reclama um, sobre o hábito popular de trazer um irmão “de favor” para morar. Os sobrados e casas somam parcos 43 metros quadrados cada.
Dos entreveros entre as duas culturas, o mais desalentador é a presença dos cavalos usados pelos carrinheiros. Eles galoparam até o platô. E agora os destemperos estomacais dos equinos são munição o bastante para uma próxima guerra. Segundo consta, o líder Edson coibiu os churrasquinhos na calçada. Mas para os “de cima”, ter de recorrer pessoalmente ao líder da favela para garantir a ordem teve um sabor amargo de abandono à própria sorte.
Um Parolin só
A interação entre moradores de ocupação e as classes médias no Parolin é um caso único no cenário da habitação local. Pode-se ver semelhanças no assentamento Vila Nina, na Fazendinha. Ou na Vila Zumbi e Alpha Ville. Mas nada se compara ao Parolin, onde 12 mil moradores representam, meio a meio, o abismo social brasileiro. Se bem conduzida, a experiência pode apontar uma saída para os conflitos que hão de se desenhar nas 254 favelas da capital, moradia de 200 mil pessoas. E servir de modelo nacional de integração.
Ao lado da Água Verde, o Parolin é um bairro da imigração italiana, logo conservador. Surgiu no final do século 19. Outrora periferia, firmou cultura própria, bolsões de riqueza e um senso de pertença que faz a palavra “bairrismo” uma marca de nascença. A geografia dos capões, ali, contudo, é mais acidentada, o que favoreceu a ocupação irregular e o cisma.
A aposta da Cohab é que essa paixão pelo Parolin some a favor e que a “cidade formal”, de cima, influencie a “cidade informal”, de baixo. “Temos a nosso lado o fato de que nenhum conjunto popular de Curitiba virou favela. É visível que os reassentados estão cuidando bem das casas, colocando cerâmica, botando cor nas paredes”, explica a assistente social Kelly Vasco, uma das gerentes da Cohab.
Com 21 anos de serviços prestados, Kelly conhece cada viela do Parolin. É o bastante para que acredite no sucesso da integração e na superação do preconceito contra as classes populares. “O Parolin da vila é comunidade de reunião mensal, decisões conjuntas. Fez grandes avanços. É uma gente de valor”, diz, lembrando que as áreas urbanas estão se esgotando e que a convivência entre diferentes, em vez de um perigo, é uma garantia de desenvolvimento urbano. Nenhum urbanista sério discordaria de Kelly.
Parte dessa máxima começa a se realizar. As novas moradoras da Rua Eugênio Parolin falam com empolgação de uma vizinha de rua, “rica”, que lhes bateu à porta, oferecendo amizade. Na Rua Chanceler Lauro Müller, os préstimos do pedreiro Elias Ubaldo Jeremias, 34 anos, reassentado, já foram descobertos. “Era pior quando havia um matagal aqui em frente”, diz o morador, sobre o terreno comprado pela Cohab e transformado em moradia. Outras virão em breve.
A cabeleireira Leoni Portela, 57 anos, 26 de Parolin, diz que nunca sofreu discriminação dos abonados. Leocádia Amaral, 46 anos, desde os 8 na região e dezenas de enchentes no currículo, adorou “subir na vila”, mas não acha que a relação vá mudar. “Cada um vai continuar do seu lado”, filosofa. Ana Lúcia Petrolini, 40 anos, soube de uma moradora “de cima” que jurou vender a casa ao ver os ocupados chegando. Não conseguiu e se rendeu aos recém-chegados.
Há mesmo quem ache essa conversa de rejeição um papo furado. Hercílio de Lima, 77 anos, 57 de vila, foi na mocidade guardião da família Parolin. Conviveu com a nobreza do velho bairro. “Os pobres sabem conviver com as pessoas de dinheiro”, aposta o veterano – dono do cavalo que hoje forma paisagem com belos sobrados lá de cima. Chato mesmo só uma coisa: sua casa nova foi assaltada duas vezes. “Levaram até pano de prato. Nunca tinha me acontecido isso”, conta. Ele é agora um típico morador do Parolin de Cima.
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