terça-feira, junho 28, 2011

Parceria ilegal, receita na mão

Na calçada, em frente da ótica, a funcionária grita a plenos pulmões: “Exame de vista a preço popular. Consulta na hora!” O valor da consulta médica, como prega a jovem de agasalho vermelho e azul, é tentador: R$ 15. O atendimento, facilitado, em um consultório próximo. Disfarçada de incentivo à população de baixa renda, a estratégia comercial parece mesmo um sucesso, não fosse ilegal. A tática adotada a olhos vistos por algumas óticas fere a legislação que regula a profissão de médicos oftalmologistas e o funcionamento de óticas, além de ser condenada por entidades do setor.

As leis vigentes proíbem qualquer associação de médicos com óticas e vice-versa. Oftalmologistas não podem indicar óticas, preencher receitas sem identificação (nome e registro profissional) ou oferecer vantagens não concedidas a demais clientes. Às óticas, é proibido manter consultório mé­­dico, mesmo em outro local. O artigo 16 do Decreto 24.492/1934 detalha que é vedado ao estabelecimento “indicar médico oculista que dê aos seus recomendados van­­­tagens não concedidas aos demais clientes e distribuir cartões ou vales que dêem direito a consultas gratuitas, remuneradas ou com redução de preço”.

Ilegalidade

Entidades condenam a prática

A prática adotada pela rede de óticas Visomax, de indicar o Consultório Oftalmológico Monsenhor, no centro de Curitiba, é criticada por profissionais de saúde e entidades do setor. O presidente da Associação Brasileira da Indústria Óptica (Abióptica), Bento Alcoforado, citou a estratégia da rede de lojas, de indicar um consultório, como “absolutamente ilegal”. “Ambos estão literalmente errados [a médica e a ótica]. Essa é uma via que não pode ser dupla, de nenhuma forma. O médico não pode indicar ótica, tampouco marca de produto, e a ótica não deve indicar o médico”, afirma.

Para o secretário-geral da Associação Paranaense de Oftalmologia (APO), Otávio Bisnetto, mesmo com o baixo valor da consulta – R$ 15, enquanto um exame mais completo custa em média R$ 150 –, a prática deve ser evitada pela população. “A pessoa tem que ir ao médico por livre e espontânea vontade e ir ao consultório que ela quiser, escolhendo um médico de sua confiança. Essa é uma tática totalmente condenável. Ótica que faz isso é picareta”, critica.

Denúncias

Segundo a Vigilância Sanitária Municipal, não há registros de denúncias envolvendo a Visomax ou o Consultório Oftalmológico Monsenhor. A coordenadora da Vigilância, Rosana Zappe, reforça que, caso as irregularidades relatadas pela reportagem sejam posteriormente confirmadas, tanto a ótica quanto o consultório podem ser multados em valores que variam de R$ 141 a R$ 5.048. O órgão, no entanto, só pode fazer autuações se houver provas concretas das irregularidades cometidas.

Serviço:

Denúncias podem ser feitas pelos telefones 156 e 0800-644-0041.

Médica diz que atividade é filantrópica

zA médica Neusa Massaoka, responsável pelo Consultório Oftal­mológico Monsenhor, nega as declarações dadas pelos funcionários da ótica Visomax, de que há uma parceira com a rede de lojas. Ela diz que vários médicos prestam atendimento no local durante a semana, quando não estão em seus próprios consultórios. Neusa garante que os profissionais não têm vínculo ou parceria com óticas e diz que eles não utilizam o consultório como fonte de renda complementar.

Exame

No Centro de Curitiba, a reportagem da Gazeta do Povo fez uma consulta médica por orientação de uma funcionária da ótica Visomax. Os exames de acuidade visual foram feitos no Consultório Oftalmo­lógico Monsenhor, em um prédio na Rua Monsenhor Celso, ao lado de uma das seis lojas da rede. Sem precisar marcar hora, o cliente é levado por um atendente da ótica ao local, onde é examinado em poucos minutos. O atendente aguarda no consultório pa­ra acompanhar o cliente novamente até a loja, onde é feito um orçamento das lentes prescritas.

Sem saber que estava sendo gravada, a funcionária da Visomax na Rua XV de Novembro, que acompanhou a reportagem até o consultório, relatou que a prescrição e venda dos óculos ocorre por meio de uma “parceria” com os médicos. “A gente indica a doutora e daí a doutora indica a nossa loja. É tudo indicação. Por enquanto a consulta é R$ 15. Ago­ ra, no consultório dela, pagar uma consulta é R$ 200. Aqui é mais barato por causa da parceria, ela faz mais barato pro cliente, daí a loja cobre o resto”, relatou a atendente.

Ao ser abordado, o cliente recebe um cartão do consultório. No verso consta o nome da funcionária da ótica, que recebe comissão pelo atendimento. Em outras três ocasiões, funcionários de outras lojas da rede também ofereceram exames a R$ 15 à reportagem. Um dos funcionários disse que o valor poderia depois ser descontado do valor do óculos. “Você consulta aqui no consultório e depois vem aqui na loja. Eles cobram R$ 15, mas fazendo o óculos a gente dá o desconto”, afirmou o atendente da loja da Rua Monsenhor Celso, ao lado do consultório.

A reportagem foi atendida por uma médica que constatou 0,5 grau de miopia no repórter. Ao final da consulta, ela disse que os óculos poderiam ser feitos em qualquer ótica. No entanto, na receita com a prescrição das lentes não constava o nome da médica nem o número de registro no Conselho Regio­nal de Medicina. Não poderia, portanto, ser aceita em nenhuma ótica. Pelo menos na teoria.

Investigação

No início do ano, a rede Visomax foi investigada pela Delegacia de Estelionato e Desvio de Cargas de Curitiba. Segundo as investigações, a ótica faria parte de um esquema que envolvia pelo menos 30 empresas de fachada, que emitiam notas frias para encobrir o contrabando de óculos da China. De acordo com o delegado responsável pelo caso, Cassiano Aufiero, a investigação ainda está em andamento, com previsão de novas diligências nos próximos 30 dias.


Exame atestou que o repórter tem 0,5 grau de miopia. Só faltava comprar os óculos (Imagem: reprodução)
Fonte: Gazeta do povo 28/06/2012

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